De tempo em tempo se vê passar pela rua onde moro o Mendigo. É uma passagem quase sazonal. Quando se pensa que sumiu e sabe-se lá Deus o fim que levou, ele retorna às nossas calçadas, caminhando em sua via crucis.
A despeito dos rumores duvidosos sobre sua origem e seu verdadeiro nome, a história do homem mendigo caminha lado a lado, água correndo pelas valetas, com a história oficial da minha rua e seus moradores. Eu mesmo, recorrendo às imagens estampadas na “parede da memória”, deparo-me, não poucas vezes, com a sua passagem lenta e rastejante pela minha infância.
No começo, coisa de quinze anos atrás, quando eu e meu sem-número de amigos brincávamos na rua, veio esse homem descalço, algo rastafari, com dedos cor de asfalto, short aparentando já ter sido calça e um violão Tonante, que disputava em peso e estatura com o Mendigo. Não lembro bem o que ele cantava empunhando a viola. Também não vem ao caso. O caso é que espantava ver um homem sem lembrar o último pão que havia comido ter de cor e salteado uma porção de acordes – é verdade que haja a expressão musical sobre “acordes que enchem os ouvidos”, agora, encher barriga...barriga mesmo, nunca tive notícia.
O homem se tornou uma atração e tanta. Principalmente para a molecada, que via naquela espécie de astro da street music a resposta às implicações de mãe: “Vem comer, meu filho! Saco vazio não pára em pé!”. Pois parava e o Mendigo era a prova viva disso. O primeiro saco vazio que, além de parar em pé, ainda tocava violão!
E foram exatamente as mães, quando a passagem do nosso ilustre visitante acontecia periodicamente e a platéia teen já ansiava pelos seus dedilhados, que passaram a fazer as vezes de segurança, não do artista, como era de se esperar, mas de seu público.
Bastava o primeiro acorde do nosso triste aspirante a Bob Marley para se seguir a ele o coro descompassado, uníssono e dissonante das mães. Desde então, quando saíamos para a rua, atrás das bolas de futebol e de gude, os olhos e ouvidos de nossas super-protetoras dividiam com nossos corpos os espaços das partidas. Era então ouvir o arrastar de pés cansados, ver de longe o traço fino de homem se mover, ou farejar o suor incrustado que, alto lá!, éramos enquadrados, com direito de ficar calados, sob a acusação de ser filho e ter de obedecer às ordens da Mãe.
Depois dessas tardes de confinamento, não lembro exatamente o que aconteceu nos anos que se seguiram. Ao Mendigo, parece que o óbvio sucedeu-se. Quanto a nós, lembrando assim depressa, sei que, quando voltei novamente para a rua, já era à noite, os amigos, em sua maioria, já não tinham a pressa do futebol nem a coleção das bolinhas de gude. Já era a fase de colecionar dinheiro, de dar indulgentemente esmolas e proteger os seus dos perigos das ruas, quem sabe até de mendigos. Lembrando assim depressa, sei que as mães continuavam mães, mesmo que agora impotentes, terceirizando sua super-proteção para Deus, nas igrejas.
E eis que, agora, lembrando assim de todas as coisas, com os olhos parados na janela, espiando a rua e a vida lá fora, vejo de longe algo como pés nascendo do chão, um trapo aparentando já ter sido shorts e um pedaço de madeira, segurando um homem pela mão. Me adianto com a cabeça para fora, inspecionando os traços do homem por detrás da barba. É o Mendigo.
Seus gestos são de quem conversa a conversa segura de quem é bem-vindo. Ele parece ter feito as pazes com o mundo. O mundo parece enfim tê-lo aceitado. Inclino um pouco mais a cabeça, quero ver com quem ele fala, a quem se destina seu modo cortês e sorridente. E é então que, entrecortada pela janela que me atrapalha a visão, vejo a cortesia correspondida, os dentes aos montes retribuindo a presença do homem. As palavras dirigidas a ele são grandes e coloridas, ora eufóricas, efusivas, ora lânguidas e quase carnais. São homens e mulheres, aleatoriamente dispostos e gentis. Os homens prestigiando a presença mendiga com sua reverência e conselhos diversos, de negócios à abordagem das fêmeas; as fêmeas, prontas para serem abordadas. O Mendigo, apontando firmemente para uma dessas figuras estáticas, é interpelado então pelo dono da banca de jornal:
- Com revista não se conversa. Revista se compra e se lê, seu doido!
A despeito dos rumores duvidosos sobre sua origem e seu verdadeiro nome, a história do homem mendigo caminha lado a lado, água correndo pelas valetas, com a história oficial da minha rua e seus moradores. Eu mesmo, recorrendo às imagens estampadas na “parede da memória”, deparo-me, não poucas vezes, com a sua passagem lenta e rastejante pela minha infância.
No começo, coisa de quinze anos atrás, quando eu e meu sem-número de amigos brincávamos na rua, veio esse homem descalço, algo rastafari, com dedos cor de asfalto, short aparentando já ter sido calça e um violão Tonante, que disputava em peso e estatura com o Mendigo. Não lembro bem o que ele cantava empunhando a viola. Também não vem ao caso. O caso é que espantava ver um homem sem lembrar o último pão que havia comido ter de cor e salteado uma porção de acordes – é verdade que haja a expressão musical sobre “acordes que enchem os ouvidos”, agora, encher barriga...barriga mesmo, nunca tive notícia.
O homem se tornou uma atração e tanta. Principalmente para a molecada, que via naquela espécie de astro da street music a resposta às implicações de mãe: “Vem comer, meu filho! Saco vazio não pára em pé!”. Pois parava e o Mendigo era a prova viva disso. O primeiro saco vazio que, além de parar em pé, ainda tocava violão!
E foram exatamente as mães, quando a passagem do nosso ilustre visitante acontecia periodicamente e a platéia teen já ansiava pelos seus dedilhados, que passaram a fazer as vezes de segurança, não do artista, como era de se esperar, mas de seu público.
Bastava o primeiro acorde do nosso triste aspirante a Bob Marley para se seguir a ele o coro descompassado, uníssono e dissonante das mães. Desde então, quando saíamos para a rua, atrás das bolas de futebol e de gude, os olhos e ouvidos de nossas super-protetoras dividiam com nossos corpos os espaços das partidas. Era então ouvir o arrastar de pés cansados, ver de longe o traço fino de homem se mover, ou farejar o suor incrustado que, alto lá!, éramos enquadrados, com direito de ficar calados, sob a acusação de ser filho e ter de obedecer às ordens da Mãe.
Depois dessas tardes de confinamento, não lembro exatamente o que aconteceu nos anos que se seguiram. Ao Mendigo, parece que o óbvio sucedeu-se. Quanto a nós, lembrando assim depressa, sei que, quando voltei novamente para a rua, já era à noite, os amigos, em sua maioria, já não tinham a pressa do futebol nem a coleção das bolinhas de gude. Já era a fase de colecionar dinheiro, de dar indulgentemente esmolas e proteger os seus dos perigos das ruas, quem sabe até de mendigos. Lembrando assim depressa, sei que as mães continuavam mães, mesmo que agora impotentes, terceirizando sua super-proteção para Deus, nas igrejas.
E eis que, agora, lembrando assim de todas as coisas, com os olhos parados na janela, espiando a rua e a vida lá fora, vejo de longe algo como pés nascendo do chão, um trapo aparentando já ter sido shorts e um pedaço de madeira, segurando um homem pela mão. Me adianto com a cabeça para fora, inspecionando os traços do homem por detrás da barba. É o Mendigo.
Seus gestos são de quem conversa a conversa segura de quem é bem-vindo. Ele parece ter feito as pazes com o mundo. O mundo parece enfim tê-lo aceitado. Inclino um pouco mais a cabeça, quero ver com quem ele fala, a quem se destina seu modo cortês e sorridente. E é então que, entrecortada pela janela que me atrapalha a visão, vejo a cortesia correspondida, os dentes aos montes retribuindo a presença do homem. As palavras dirigidas a ele são grandes e coloridas, ora eufóricas, efusivas, ora lânguidas e quase carnais. São homens e mulheres, aleatoriamente dispostos e gentis. Os homens prestigiando a presença mendiga com sua reverência e conselhos diversos, de negócios à abordagem das fêmeas; as fêmeas, prontas para serem abordadas. O Mendigo, apontando firmemente para uma dessas figuras estáticas, é interpelado então pelo dono da banca de jornal:
- Com revista não se conversa. Revista se compra e se lê, seu doido!
13 comentários:
Adorei o texto e o desenho! Muito bem feitos e interessantes. A primeira visita foi bem agradável. Só uma dúvida: o que faz a mão direita do mendigo? rs
Abraços!
Achei muito legal. O desenho também é bem interessante.
É um texto leve e agradável de se ler. Com um final que mistura uma espécie de surpresa e monotonia (a mudança que só passou pelo discurso, mas que nunca ocorreu).
gu, aposto que o texto foi você quem escreveu e a ilustração a camila quem fez! muito bem feitos os dois...parabéns, meu!!!
gostei bastante!!!
quando vocês atualizarem aqui me avisem, hein!!!
beijão!!
Demorei pra ler, mas não por falta de vontade. Talvez falta de vergonha na cara pra sair daquele sofá. Rs
E olha que valeu muito a pena ter vindo até seu quarto e sentar em frente ao computador pra ler. Rs
Adorei o texto, Gu! Muito bem desenvolvido como todos os seus textos que já li. Posta aquele que você fez com gírias! Adoro aquele também!
E parabéns pelo desenho [ pra você e pra Mi ]!
=D
Beijo!
Hahaha , será que o mendigo tocava Raul , Beatles ? Muito bom cara , na minha mente td aconteceu bem aí , em frente a sua casa e passando pela banca . O mendigo deveria tocar bem alto " Across the Universe " , abraço Gustavão .
Bom, o Mendigo star da minha vila é conhecido por Davi Loquinho, ele é mto famoso por aqui, não toca violão, mas vive vestido com um short jeans que parece já ter sido calça...
Parabéns pra vcs dois!
Bjos!
O texto ficou muito 'expressivo'. Sabe texto que te faz refletir, viajar e aí te traz bem p'ro presente? (Seu doido!). Ficou assim Gus! ;)
A ilustração tb ficou MUITO boa, deveras expressiva!
Continue sobre nossos olhares! \o
Texto maravilhoso... Tem uma graça sutil e latente com a qual há muito eu não me deparava! Impossível o leitor não entrar na sintonia...
E, claro, a ilustração está belíssima!
Beijos!
Do desenho eu já gostava antes...
Agora gosto do texto tambem!
Abraços
Quase todo mundo que eu conheço, também te conhece. Foi o maior elogio que pensei em lhe fazer, divulgá-lo. Só preciso fazer isto na internet também. Perdoei-me.
Lindo!
um ar nostálgico, um ar de realidade. essa crônica me deixou nos ares.
não fosse minha falta de inspiração cotidiana, faria um comentário literário, mas não me vem nada interessante à cabeça.
digo que gostei do desenho; foi ele singelo como o texto. e quanto ao texto, eu achei as linhas verdadeiras, achei sagazes os pequenos comentários, achei que tudo me fez achar alguma coisa, que não foi muito literária não, foi do lado de dentro de mim.
Gostei muito, Gu, parabéns!
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